domingo, 12 de julho de 2009

Galo


A mobilidade é restrita pelo calcanhar a partir do momento em que uma mão desconhecida o puxa pela cabeça. A única reclamação é o choro que eles dizem ser primordial para a vida. Se você está aqui, como qualquer idiota, você chorou.

E se houve alguma ligação fraterna, ela foi cortada. Anos mais tarde, o hospício fez questão de podar a simbolização. O que se encontra são gritos por ajuda enlatados nas retinas das outras vítimas dessa tortura chamada mentira. Vadiagem e fidalguia se baseiam no mesmo conceito de mentira, apartados por direção. Vadio mente para os outros; fidalgo, para si mesmo.

Quando saí do hospício encontrei um galo cantando; e bombas ecoaram nas nuvens. Coloquei em prática tudo que aprendi: levei a mão à cabeça, encolhi o corpo e despistei obstáculos.

Um profeta na esquina cantava que há algo que não se pode enganar; e há algo que nos espera quando não há de se esperar. Então, essas datas premeditadas são falsas. Descobrir mentiras prontas é fácil; difícil é saber onde não encontrá-las.

Os olhos petrificados de um galo eu vi, certa manhã, quando saí do hospício, e ele cantou. Bombas ecoaram nas nuvens.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Legítima Defesa


Saindo do serviço depois de um dia estressante
Pego o primeiro ônibus em direção ao centro
O ônibus voa como uma barata ambulante
Rumando cada vez mais pelo esgoto adentro

Uma parada, pego outro ônibus
Não presto atenção, só se que sigo a viagem
Passo pelo córrego, não presto atenção
Só sei que sinto o odor humano daqui da margem

Chego ao terminal, começo a caminhada
Só penso em chegar em casa, poder banhar
Poder descansar, assistir ao noticiário local
Mas não imaginava que antes seria parado
Por uma viatura policial

Plantaram um revolver na minha pasta
E me acusaram de assalto
Eu disse: “Mas eu só estava trabalhando”
O soldado riu e respondeu:
“Nós também estamos”

Fui interrogado e autuado
Ameaça a integridade física
Ou seja:
Fui morto em legítima defesa

terça-feira, 7 de julho de 2009

Clemência


Ajoelhou-se, fechou os olhos, juntou as mãos. Esqueceu-se dos tormentos e entrou na janela dos olhos de quem não vê. Guardou as perguntas que sustentaram o massacre e se entregou.

Fez a renúncia e sentiu a chuva chovendo. Contorceu-se e não pediu nada. Olhou as mãos e viu decadência. Cortou o pulso e sentiu dor. Abraçou as sandálias do mestre e sentiu a mão pousando na sua cabeça. A língua dançou, a alma chorou e o veneno virou pedra. Pagou pela agonia que causou. Sentiu sede e os joelhos derretendo; extirpou os desejos.

Levantou a cabeça e viu os olhos dourados. Pediu clemência.

sábado, 4 de julho de 2009

Depois da Sete


Você quer saber o que faço quando acordo
Depois de dormir o dia inteiro
Eu lhe digo: eu não sei
O que faço primeiro

Expressões são movimentos faciais
Gestos são expressões canibais

Quando acordo, olho o espelho
Vejo pares corando de medo
E recordo tudo que disse que lembraria jamais

Mas me esqueço do mais importante
Das lembranças gravadas na instante
Das particularidades de uma mente ignorante

Tomo banho, visto a roupa.
E arranho a voz rouca
De sono permanente

Já não me lembro do dia quente
Que partiu depois da sete.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

A Um Amigo de Guerra

Um grande amigo de guerra comemora um feito de longevidade hoje. Várias batalhas travadas neste campo astucioso. Perdemos algumas, é verdade. Perdemos várias, a maioria, na grande realidade. Mas a maior de todas continuamos vencendo: mesmo que percamos a moral diariamente, tomando tapas na cara, estamos sobrevivendo. E isso é o mais importante em qualquer guerra, porque este é o objetivo de qualquer guerra.

Há golpes mais dolorosos que outros. O que mais dói é aquele que vem de um irmão de guerra. Eu esbofeteei a cara do meu companheiro de guerra, sem remorsos. E aprendi a lição mais primorosa que se pode aprender em uma guerra: não há golpe para o qual não exista um revide.

E depois do contragolpe, eu me levantei, abracei o meu amigo e pedi desculpas. Estamos juntos outra vez e, como sempre, descobrindo campos de batalha cada vez mais tenebrosos. E um dia cairemos – juntos, é claro –, mas antes daremos um tapa surdo no monstro que nos vencerá.