sexta-feira, 10 de julho de 2009

Legítima Defesa


Saindo do serviço depois de um dia estressante
Pego o primeiro ônibus em direção ao centro
O ônibus voa como uma barata ambulante
Rumando cada vez mais pelo esgoto adentro

Uma parada, pego outro ônibus
Não presto atenção, só se que sigo a viagem
Passo pelo córrego, não presto atenção
Só sei que sinto o odor humano daqui da margem

Chego ao terminal, começo a caminhada
Só penso em chegar em casa, poder banhar
Poder descansar, assistir ao noticiário local
Mas não imaginava que antes seria parado
Por uma viatura policial

Plantaram um revolver na minha pasta
E me acusaram de assalto
Eu disse: “Mas eu só estava trabalhando”
O soldado riu e respondeu:
“Nós também estamos”

Fui interrogado e autuado
Ameaça a integridade física
Ou seja:
Fui morto em legítima defesa

terça-feira, 7 de julho de 2009

Clemência


Ajoelhou-se, fechou os olhos, juntou as mãos. Esqueceu-se dos tormentos e entrou na janela dos olhos de quem não vê. Guardou as perguntas que sustentaram o massacre e se entregou.

Fez a renúncia e sentiu a chuva chovendo. Contorceu-se e não pediu nada. Olhou as mãos e viu decadência. Cortou o pulso e sentiu dor. Abraçou as sandálias do mestre e sentiu a mão pousando na sua cabeça. A língua dançou, a alma chorou e o veneno virou pedra. Pagou pela agonia que causou. Sentiu sede e os joelhos derretendo; extirpou os desejos.

Levantou a cabeça e viu os olhos dourados. Pediu clemência.

sábado, 4 de julho de 2009

Depois da Sete


Você quer saber o que faço quando acordo
Depois de dormir o dia inteiro
Eu lhe digo: eu não sei
O que faço primeiro

Expressões são movimentos faciais
Gestos são expressões canibais

Quando acordo, olho o espelho
Vejo pares corando de medo
E recordo tudo que disse que lembraria jamais

Mas me esqueço do mais importante
Das lembranças gravadas na instante
Das particularidades de uma mente ignorante

Tomo banho, visto a roupa.
E arranho a voz rouca
De sono permanente

Já não me lembro do dia quente
Que partiu depois da sete.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

A Um Amigo de Guerra

Um grande amigo de guerra comemora um feito de longevidade hoje. Várias batalhas travadas neste campo astucioso. Perdemos algumas, é verdade. Perdemos várias, a maioria, na grande realidade. Mas a maior de todas continuamos vencendo: mesmo que percamos a moral diariamente, tomando tapas na cara, estamos sobrevivendo. E isso é o mais importante em qualquer guerra, porque este é o objetivo de qualquer guerra.

Há golpes mais dolorosos que outros. O que mais dói é aquele que vem de um irmão de guerra. Eu esbofeteei a cara do meu companheiro de guerra, sem remorsos. E aprendi a lição mais primorosa que se pode aprender em uma guerra: não há golpe para o qual não exista um revide.

E depois do contragolpe, eu me levantei, abracei o meu amigo e pedi desculpas. Estamos juntos outra vez e, como sempre, descobrindo campos de batalha cada vez mais tenebrosos. E um dia cairemos – juntos, é claro –, mas antes daremos um tapa surdo no monstro que nos vencerá.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Drama


É indescritivelmente quente. Um suco gelado cairia bem. Ainda mais sentado numa so1bra. Só de pensar, a boca umedeceu. E assim aconteceu. Pediu um suco e de pronto entregou a nota. Logo veio um suco de acerola, que descido pela garganta, fez a cabeça doer, de tão gelado. Mesmo assim, ficou satisfeito; estava regando o deserto do seu bucho.
 
Bebeu meio litro de suco numa única golada. Quando terminou lambeu os lábios, mas foi interrompido por uma abelha que pousou na ponta do nariz. Afanou com as mãos; o inseto circulou e voltou a pousar na ponta do nariz. Deu um tapa no nariz; os olhos umedeceram e a abelha voltou a pousar no mesmo lugar. Fungou. Não adiantou. Fungou de novo, agora com mais força; o inseto voou para cima e a secreção escorreu para baixo. Uma jovem bela assistia o drama. Até então sorria, mas ao ver a última cena, fez cara de asco.

Duas gotas de suor correram da testa do fadigado. Novamente a abelha estava pousada na ponta do nariz. Permaneceu imóvel, no intuito do inseto perder a graça e abandonar a brincadeira. A abelha começou a andar pelo nariz. Sacudiu a cabeça e em frações de segundos aquele animal demoníaco pousou novamente no nariz. Sentiu calor. A camisa pregou-lhe nas costas. Os sapatos sufocaram os pés.

Estava com a boca entreaberta quando a abelha pousou nos lábios. Num gesto ligeiro abocanhou-a. Ela se debateu nas bochechas por alguns instantes. Parou. Sentiu-se aliviado. Foi interrompido pela ferroada na língua. Instintivamente abriu a boca e a abelha partiu. Afogou o gemido de dor e notou que havia inchado. Mas pensou consigo mesmo que abelhas vão embora depois de agredir. Foi interrompido por zunidos no ouvido. Instintivamente tapou o ouvido. Com receio de outra picada, deixou a abelha sair; que caprichosamente pousou na ponta do nariz.

Engoliu um amargo de aflição. Lembrou-se dos caipiras que usavam insetos voadores como desculpa para justificar o vício do fumo. Sendo assim, acendeu um cigarro. O bicho voou e pousou no cigarro. Tragou com força, na esperança de queimá-la. Quando ia, voltou para o nariz. Continuou fumando e a abelha saiu. Terminou o cigarro e ela voltou.

Balançava a cabeça e ela saia; parava e ela voltava. Sentiu vontade de chorar. Em pensamentos, reclamou da vida pobre que levava, do fracasso intelectual, por não ter família, por duvidar de Deus. Sentiu vontade de morrer, quando enfim uma lágrima escorreu do olho.

Fechou o semblante, e com a astúcia de uma cascavel escorregou o braço para o bolso da calça. E com a fúria de uma águia, levou o isqueiro até o nariz. Ouviu o tilintar agoniante da abelha se queimando. Sentiu o ardor agudo no nariz. Mas ao menos matara o inseto. Olhou o relógio; era hora de voltar ao serviço. Atravessou a rua e foi.

Um companheiro surgiu e quando o olhou, sorriu, dizendo:

-  Bastava me dizer, meu chapa. Não era preciso fazer bico no semáforo. Mas já que quis, nariz de palhaço é vermelho, não roxo.

Abaixou a cabeça para achar uma pedra e tirar o sorriso daquele desgraçado. Ao invés disso, pegou as ferramentas no chão e começou a trabalhar. O outro ainda ria, chamando um colega para ver aquele nariz.

Ao menos matara a abelha, pensou.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Correntes


As vezes há um círculo que me prende
Tranca tudo que tenho em mim mesmo
Apenas sinto que é algo que tende
A me jogar a esmo

Sinto que sou aleijado de entranhas
Incapaz de compreender aquilo que não entendo
Mas vejo sensibilidade em coisas estranhas
Só não sei mais o que estou querendo

Minha cabeça me limita
Meu pensamento é minha cadeia

Celas, grades
Selam a paz
E a liberdade?

domingo, 21 de junho de 2009

Enfeites

O vento é gélido. As cortinas esvoaçam como os cabelos da madame que se prepara para o baile. A selvageria é a mesma: a da madame em ser aceita e desejada esta noite e a do vento em fazer seu serviço de coadjuvante sinistro e aterrorizador, também esta noite. As chamas das velas se cedem ao charme animalesco do vento; a consumação acompanha os orgasmos múltiplos de anseios da madame para esta noite.

Mas esta noite só queremos um pouco de música para os elementos poder dançar. Helmo afinou as duas cordas mais finas do violão, lançou dois ou três acordes que mesclaram ao vento. Tomou um gole vistoso da bebida anil.

[...]