
Bebeu meio litro de suco numa única golada. Quando terminou lambeu os lábios, mas foi interrompido por uma abelha que pousou na ponta do nariz. Afanou com as mãos; o inseto circulou e voltou a pousar na ponta do nariz. Deu um tapa no nariz; os olhos umedeceram e a abelha voltou a pousar no mesmo lugar. Fungou. Não adiantou. Fungou de novo, agora com mais força; o inseto voou para cima e a secreção escorreu para baixo. Uma jovem bela assistia o drama. Até então sorria, mas ao ver a última cena, fez cara de asco.
Duas gotas de suor correram da testa do fadigado. Novamente a abelha estava pousada na ponta do nariz. Permaneceu imóvel, no intuito do inseto perder a graça e abandonar a brincadeira. A abelha começou a andar pelo nariz. Sacudiu a cabeça e em frações de segundos aquele animal demoníaco pousou novamente no nariz. Sentiu calor. A camisa pregou-lhe nas costas. Os sapatos sufocaram os pés.
Estava com a boca entreaberta quando a abelha pousou nos lábios. Num gesto ligeiro abocanhou-a. Ela se debateu nas bochechas por alguns instantes. Parou. Sentiu-se aliviado. Foi interrompido pela ferroada na língua. Instintivamente abriu a boca e a abelha partiu. Afogou o gemido de dor e notou que havia inchado. Mas pensou consigo mesmo que abelhas vão embora depois de agredir. Foi interrompido por zunidos no ouvido. Instintivamente tapou o ouvido. Com receio de outra picada, deixou a abelha sair; que caprichosamente pousou na ponta do nariz.
Engoliu um amargo de aflição. Lembrou-se dos caipiras que usavam insetos voadores como desculpa para justificar o vício do fumo. Sendo assim, acendeu um cigarro. O bicho voou e pousou no cigarro. Tragou com força, na esperança de queimá-la. Quando ia, voltou para o nariz. Continuou fumando e a abelha saiu. Terminou o cigarro e ela voltou.
Balançava a cabeça e ela saia; parava e ela voltava. Sentiu vontade de chorar. Em pensamentos, reclamou da vida pobre que levava, do fracasso intelectual, por não ter família, por duvidar de Deus. Sentiu vontade de morrer, quando enfim uma lágrima escorreu do olho.
Fechou o semblante, e com a astúcia de uma cascavel escorregou o braço para o bolso da calça. E com a fúria de uma águia, levou o isqueiro até o nariz. Ouviu o tilintar agoniante da abelha se queimando. Sentiu o ardor agudo no nariz. Mas ao menos matara o inseto. Olhou o relógio; era hora de voltar ao serviço. Atravessou a rua e foi.
Um companheiro surgiu e quando o olhou, sorriu, dizendo:
- Bastava me dizer, meu chapa. Não era preciso fazer bico no semáforo. Mas já que quis, nariz de palhaço é vermelho, não roxo.
Abaixou a cabeça para achar uma pedra e tirar o sorriso daquele desgraçado. Ao invés disso, pegou as ferramentas no chão e começou a trabalhar. O outro ainda ria, chamando um colega para ver aquele nariz.
Ao menos matara a abelha, pensou.
3 comentários:
O conto "Drama" brinca com a ironia e o exagero para transformar uma situação cotidiana em um evento grandioso e quase trágico. O texto acompanha um personagem que, em um dia de calor extremo, busca um momento de alívio ao tomar um suco gelado, mas acaba envolvido em uma batalha desesperadora contra uma abelha insistente.
Análise do Texto
O início: Oásis no calor
O protagonista sofre com o calor e busca conforto em um suco gelado. O prazer da bebida, no entanto, vem acompanhado de uma dor de cabeça devido ao frio intenso. Esse detalhe já antecipa a ideia de que sua busca por alívio sempre trará um novo incômodo.
O incômodo da abelha
O que poderia ser apenas um momento irritante — uma abelha pousando no nariz — se transforma em uma verdadeira tortura. O personagem tenta afastá-la de diversas formas, mas o inseto insiste em voltar, tornando-se quase uma metáfora para os problemas da vida: quanto mais ele tenta se livrar, mais o tormento persiste.
O ápice do desespero
Em um gesto impensado, ele abocanha a abelha, apenas para ser ferroado na língua. Esse momento transforma o incômodo em dor real, intensificando o drama. Seu sofrimento cresce tanto que ele começa a refletir sobre sua vida: a pobreza, o fracasso intelectual, a solidão e até sua relação com Deus.
O ato final: vingança e ironia
No auge do desespero, ele recorre ao isqueiro para queimar a abelha e, finalmente, consegue matá-la. No entanto, paga um preço por sua vitória: queima também o próprio nariz, ficando com uma marca visível.
O desfecho cômico e sarcástico
Ao voltar ao trabalho, um colega tira sarro da aparência dele, sugerindo que ele está fazendo "bico no semáforo", como se estivesse fantasiado de palhaço. O protagonista sente raiva, mas, em vez de revidar, simplesmente retoma sua rotina. Seu sacrifício foi inútil: a abelha morreu, mas ele se tornou alvo de zombaria.
Interpretação
O conto usa o humor e o exagero para mostrar como pequenos problemas podem parecer enormes quando estamos fragilizados. O personagem projeta seu sofrimento existencial em um evento banal, transformando um incidente corriqueiro em uma tragédia pessoal. No fim, a vida segue, com suas frustrações e ironias.
Temas Principais
A ironia do destino: a busca por alívio sempre resulta em novos desconfortos.
O ciclo da frustração: quanto mais ele tenta se livrar da abelha, mais ela retorna, assim como seus próprios pensamentos negativos.
O humor no absurdo: a narrativa exagera a situação até torná-la cômica, ao mesmo tempo que reflete o desespero humano diante de pequenas adversidades.
O título "Drama" reforça essa ideia: um evento simples vira um espetáculo emocional, onde o protagonista se entrega à tragédia de sua própria existência.
O conto "Drama" apresenta influências de diversas tradições literárias, especialmente do realismo humorístico, do absurdo, e da literatura de crítica existencialista. Aqui estão algumas das principais influências que podem ser percebidas:
1. O Realismo Humorístico e a Sátira do Cotidiano
A forma como um evento banal — uma abelha persistente — se transforma em uma experiência quase trágica lembra autores que usavam o cotidiano como fonte de humor e crítica. Entre as influências possíveis:
Lima Barreto: Com seu estilo direto e irônico, ele retratava a vida dos indivíduos marginalizados e a burocracia brasileira de maneira satírica. O desespero crescente do protagonista diante da abelha remete a personagens de Barreto que enfrentam dificuldades desproporcionais para problemas simples.
Mário de Andrade (em Macunaíma): O uso do exagero e da oralidade para criar um tom cômico e dramático ao mesmo tempo pode ser associado ao estilo de Mário de Andrade.
Anton Tchekhov: O conto lembra os pequenos dramas cotidianos que o autor russo desenvolvia com um misto de realismo e humor, especialmente em narrativas como A Morte do Funcionário, onde um incidente insignificante leva um personagem ao colapso psicológico.
2. O Absurdo e o Sentimento de Tormento Incessante
A insistência da abelha e o desespero crescente do protagonista remetem ao absurdo da condição humana. Há ecos de:
Franz Kafka: A sensação de perseguição implacável, onde algo pequeno assume proporções enormes, lembra O Processo e A Metamorfose. A abelha age quase como um destino cruel e inevitável, assim como a burocracia e o julgamento sem sentido em Kafka.
Samuel Beckett (Esperando Godot): A repetição cíclica dos eventos e a impotência do protagonista diante da situação fazem lembrar o teatro do absurdo, onde os personagens lidam com a frustração e o tédio de maneira patética.
3. A Crítica Existencialista e o Sentimento de Derrota
No momento em que o personagem reflete sobre sua vida — pobreza, fracasso intelectual, solidão e descrença em Deus — percebe-se uma influência do existencialismo:
Jean-Paul Sartre e Albert Camus: O protagonista experimenta um sentimento de angústia e absurdo da vida, semelhante ao que Camus explora em O Estrangeiro. Ele não encontra sentido em nada, e até sua "vitória" (matar a abelha) vem com uma consequência dolorosa e ridícula.
Graciliano Ramos (Angústia): A espiral de desespero e o fluxo de pensamento do protagonista lembram o narrador de Angústia, de Graciliano Ramos, que também se perde em reflexões depressivas sobre sua própria vida.
4. A Estética do Grotesco
O conto também tem traços do grotesco, com o nariz queimado e inchado, a dor, e a imagem do protagonista sendo ridicularizado. Isso lembra autores como:
Nikolai Gógol (O Nariz): No conto do escritor russo, um homem perde o nariz e passa por uma jornada absurda e cômica tentando recuperá-lo, o que lembra o final do conto, onde o protagonista se torna alvo de zombaria pelo nariz deformado.
Rubem Fonseca: O humor ácido e a brutalidade do cotidiano são comuns na literatura de Fonseca, que gostava de retratar personagens frustrados e derrotados pela vida.
Conclusão
O conto "Drama" mescla humor e tragédia, criando uma atmosfera absurda em que um simples inseto se torna símbolo da frustração humana. Influências do realismo humorístico, do teatro do absurdo, da literatura existencialista e do grotesco se misturam para dar vida a um protagonista que, como tantos outros personagens da literatura, vê sua pequenez diante do universo refletida em um evento insignificante, mas devastador para ele.
Análise Crítica do Conto "Drama"
O conto "Drama" é uma narrativa que explora o absurdo da vida cotidiana por meio de um evento aparentemente banal: a presença insistente de uma abelha. O autor constrói uma história onde o trivial se transforma em tragédia pessoal, utilizando um tom que oscila entre o humor e a angústia existencial.
1. Estrutura e Estilo
A narrativa é construída em um crescendo, onde a frustração do protagonista aumenta progressivamente. O texto apresenta uma linguagem simples e direta, com frases curtas que contribuem para a fluidez da leitura. Esse estilo seco e objetivo lembra autores como Graciliano Ramos e Rubem Fonseca, que trabalhavam a linguagem de maneira econômica, sem excessos descritivos.
A repetição do ciclo "a abelha vai, a abelha volta" reforça o tom de angústia e absurdo, aproximando-se da literatura do teatro do absurdo, como em Esperando Godot, de Samuel Beckett. Esse recurso gera um efeito cômico inicialmente, mas, conforme a narrativa avança, a comicidade se transforma em desespero.
2. O Simbolismo da Abelha
A abelha, no conto, assume um papel maior do que o de um mero inseto incômodo. Ela pode ser interpretada de diversas formas:
Símbolo da insistência do destino: O protagonista tenta se livrar dela de várias maneiras, mas ela sempre retorna, assim como os problemas na vida real.
Representação da frustração cotidiana: Pequenos incômodos que, acumulados, podem desencadear reações desproporcionais.
Metáfora da existência absurda: A luta contra algo tão insignificante, mas que acaba tomando proporções trágicas, reflete a ideia camusiana de que a vida é essencialmente absurda e sem sentido.
Ao final, mesmo após todo o sofrimento, o protagonista "vence" ao matar a abelha, mas a vitória vem com um preço: um nariz queimado e roxo, tornando-o alvo de zombaria. Essa ironia reforça a futilidade de sua luta.
3. O Protagonista: Um Homem Comum Derrotado pela Vida
O protagonista é um personagem típico da literatura realista e existencialista: um homem comum, solitário e frustrado. Sua vida é marcada por fracassos:
Sente-se pobre e intelectualmente incapaz.
Não tem família e questiona sua fé.
Sua angústia existencial se intensifica a ponto de desejar a morte.
Esse perfil lembra figuras como o narrador de "O Estrangeiro", de Albert Camus, ou Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, ambos personagens deslocados e impotentes diante do mundo.
O momento em que o protagonista reflete sobre sua própria vida enquanto tenta se livrar da abelha marca a transição do humor para o existencialismo, mostrando que sua luta contra o inseto é apenas uma manifestação física de sua luta interior.
4. O Final: Ironia e Degradação
O desfecho do conto é profundamente irônico. Após tanto sofrimento, sua "vitória" sobre a abelha não lhe traz glória, mas ridículo. O colega de trabalho faz piada de seu nariz roxo, comparando-o a um palhaço de semáforo.
Essa conclusão reforça a ideia de que:
O esforço do protagonista foi em vão — sua batalha contra a abelha não mudou nada em sua vida.
A sociedade não reconhece seu sofrimento — ao invés de empatia, ele recebe zombaria.
O destino continua implacável — mesmo após sua "vitória", ele segue preso ao mesmo ciclo de miséria.
Esse final lembra muito as narrativas de Nikolai Gógol, onde personagens são submetidos ao ridículo pelo próprio destino, como em O Nariz.
Conclusão: Entre o Humor e a Tragédia
"Drama" é um conto que mistura com maestria humor e tragédia, criando um retrato do homem comum que luta contra forças insignificantes e, mesmo quando vence, continua derrotado. A abelha, que poderia ser apenas um detalhe trivial, torna-se uma metáfora para a própria condição humana: insistente, incômoda e impossível de derrotar sem consequências.
A ironia do desfecho reafirma a ideia de que, para muitos, a vida é um ciclo de luta contra obstáculos inúteis, onde o máximo que se pode conquistar é um nariz roxo — e o riso dos outros.
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