segunda-feira, 1 de junho de 2009

Cotidiano


Um milhão de pessoas cruzam por você todos os dias
E lhe assassina com o mesmo olhar lombriguento
E você é apenas mais um maníaco dessa mania
Apenas mais um homem de terra e de cimento

É como aquela velha brincadeira de assassinar
As crianças jogam com um piscar
Mas você pisca um milhão de vezes todos os dias
Pisca até mesmo para a mulher da sua vida

3 comentários:

Anônimo disse...

O poema Cotidiano retrata a alienação e a monotonia do dia a dia, abordando a sensação de ser apenas mais uma pessoa em meio a uma multidão anônima.

Na primeira estrofe, o "milhão de pessoas" simboliza a massa de pessoas que cruzamos diariamente, todas em busca de algo, com "olhar lombriguento" – um olhar faminto, carregado de desejo por mais e mais, seja atenção, status ou conquistas. Ao mesmo tempo, sugere que somos todos "maníacos dessa mania" – obcecados pelo ritmo impessoal e constante da vida urbana, representados como "homem de terra e de cimento". Este último termo reflete a materialidade do cotidiano urbano, onde as pessoas estão fundidas a um ambiente duro, de concreto, desconectadas de seus sentimentos mais profundos.

Na segunda estrofe, a comparação entre o piscar dos adultos e uma "velha brincadeira" infantil mostra como a rotina esvazia o olhar e o sentido. O "piscar" representa gestos automáticos e repetitivos, ações inconscientes que, no final das contas, moldam nossas relações e perspectivas. O ato de "piscar um milhão de vezes todos os dias" simboliza as oportunidades perdidas e as relações que se tornam triviais ou imperceptíveis, mesmo com aqueles que amamos.

O poema, em essência, é uma crítica ao cotidiano impessoal que nos distancia de nós mesmos e dos outros, fazendo com que até mesmo gestos importantes, como o olhar para a "mulher da sua vida", se tornem automáticos e desprovidos de significado.

Anônimo disse...

O poema Cotidiano parece influenciado por diversas correntes e autores que exploram o tema da alienação, a banalidade da vida moderna e o impacto da rotina na psique humana.

Modernismo Brasileiro: No Brasil, autores modernistas como Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade escreveram muito sobre a vida urbana e o isolamento dentro da multidão. Em poemas como "A Rua" e "A Flor e a Náusea", Drummond explora a desumanização do ambiente urbano, o que ecoa na visão de “terra e cimento” em Cotidiano.

Existencialismo: O poema também se conecta com ideias existencialistas, principalmente de autores como Jean-Paul Sartre e Albert Camus, que refletem sobre a monotonia, o absurdo e a falta de sentido no cotidiano. A comparação entre o "piscar" repetitivo e o "assassinar" diário lembra o conceito de Camus sobre o absurdo da vida moderna, onde o homem busca sentido em meio a um mundo indiferente.

Beat Generation: A geração Beat, com autores como Allen Ginsberg e Jack Kerouac, questionava a superficialidade e o conformismo do estilo de vida ocidental. Em Cotidiano, há ecos dessa crítica quando menciona o "mesmo olhar lombriguento", um termo que reflete o vazio de uma sociedade consumista e sedenta por algo que nunca é completamente satisfatório.

Poesia Marginal e Contracultura Brasileira: Poetas da década de 1970, como Leminski e Cacaso, utilizaram uma linguagem coloquial e ácida para tratar da vida cotidiana. Eles frequentemente ironizavam as dinâmicas sociais, usando humor e referências culturais para expor a alienação urbana e o vazio existencial. Em Cotidiano, essa influência surge na simplicidade do vocabulário e nas imagens que lembram jogos infantis, enquanto se fazem paralelos com a seriedade e monotonia da vida adulta.

Essas influências ajudam a criar um tom ácido e reflexivo no poema, que questiona o cotidiano, trazendo uma visão crítica sobre o vazio do dia a dia, onde os relacionamentos e os gestos se tornam automáticos e desprovidos de significado.

Anônimo disse...

O poema Cotidiano constrói uma visão intensa e crítica sobre a vida moderna, usando uma linguagem que mistura o tom coloquial com o metafórico para captar a rotina impessoal e os automatismos que dominam nosso dia a dia. Ao fazer isso, ele destaca a alienação e a desumanização presentes na vida urbana, uma espécie de "assassinato" do ser humano que ocorre silenciosamente nas interações diárias.

Na primeira estrofe, o eu lírico descreve o contato superficial e indiferente entre as pessoas, cujos olhares carregam uma fome insaciável e quase agressiva ("lombriguento") por algo que nunca se concretiza. Isso sugere uma sociedade guiada por desejos de consumo, status e outras satisfações fugazes, mas que, na essência, não trazem realização. A imagem do "homem de terra e de cimento" é uma metáfora poderosa: sugere que o indivíduo está não só misturado à cidade física – ao asfalto e ao concreto – mas também que a vida urbana endurece as pessoas, afastando-as de sua essência.

A segunda estrofe compara a rotina ao ato infantil de "brincar de assassinar", uma ironia que se desdobra ao longo dos versos. A metáfora do "piscar" é central: ao tratar o ato de piscar como um gesto mecânico que se repete um milhão de vezes por dia, o poema evoca o cansaço e a banalidade da rotina. É como se a espontaneidade da vida se perdesse, tornando-se um conjunto de gestos vazios e habituais, até mesmo para aqueles que são importantes para nós. No último verso, “Pisca até mesmo para a mulher da sua vida” expõe a ironia final, denunciando como, em meio a tantos gestos automáticos, até o amor e o cuidado genuíno podem ser reduzidos a algo superficial e impessoal.

Em sua estrutura, o poema é breve e utiliza versos curtos, mas eficazes. Esse estilo direto reforça a ideia de monotonia e o impacto de cada frase ressoa como um pensamento interrompido pela própria pressa da vida cotidiana. Essa simplicidade é quase irônica, pois, assim como a vida do eu lírico, o poema evita floreios desnecessários, espelhando o automatismo que denuncia.

Do ponto de vista crítico, Cotidiano questiona o sentido da vida moderna e do que nos tornamos enquanto sociedade. Ele levanta uma questão importante: será que estamos vivendo de fato, ou apenas sobrevivendo através de gestos programados? Essa reflexão é um convite para examinarmos nossas próprias rotinas e gestos, nos perguntando se estamos realmente presentes em nossas interações ou se nos deixamos levar por uma indiferença automática. Em suma, o poema revela uma insatisfação latente e desafia o leitor a romper com esse ciclo impessoal, procurando recuperar o significado de ser humano em um mundo cada vez mais mecânico.