quarta-feira, 3 de junho de 2009
Elas e Eu
Então elas chegam. A de lá com uma expressão de lágrimas recém caídas; de um rosto que propõe uma feição diferente da que a impressão causa. Mas fatos são sempre minuciosos. De nada vale a generalidade das impressões.
Elas sentam, em um único acento. Fatos são fatos; e eu me lembro, orgulhoso, da minha ideia anterior. Uma no colo da outra. Todos olham desconfiados. Em instantes a desconfiança se torna espanto. “O que é isso?” “Não é possível”; é o que consigo ouvir dos cochichos. Já os veteranos daquele ambiente não se espantam mais; já se acostumaram. Apenas o novo causa espanto. Depois que deixa de ser novidade, se torna rotina. E depois tédio. Acredito que é assim, pelo que já vivi. Tédio corrói.
E é o que sinto agora: um belo tédio desafinado.
Faz calor e eu olho, observando. Lembro-me de quando tomei o ônibus para vir até aqui. Até os transeuntes dos coletivos são os mesmos; nos mesmos horários.
Volto da minha divagação; a primeira passa a mão nas costas, por dentro da blusa, da outra. “O que é isso?” “Sutiã.” “Aquele que lhe dei?” “Não...” “Para, amor!” Amor? Alguns olham, outros não. Mas todos fingiram não ouvir. Inclusive eu.
As duas são belas, e eu encaro a segunda, a feminina. Apenas para irritar a primeira. Procuro o vinco dos ciumentos no rosto dela. Elas mudam de cadeira; se sentam de costas para mim.
“Você não faz parte deste mundo”. É, não faço. Mas temos gostos em comum.
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4 comentários:
O texto "Elas e eu" apresenta uma narrativa introspectiva, explorando o ponto de vista de alguém observando um casal de mulheres em um ambiente onde há uma mescla de curiosidade, desconforto e tédio. O narrador descreve com detalhe o impacto inicial que a chegada das duas mulheres causa nos presentes. De maneira sutil e observadora, ele capta o julgamento e o espanto daqueles ao redor, enquanto reflete sobre como, em um primeiro momento, algo "diferente" gera reação, mas que, com o tempo, se torna rotina — e, eventualmente, causa tédio.
O narrador também expressa uma sensação de deslocamento e um certo cinismo, insinuando que ele está distanciado emocionalmente das convenções e reações do ambiente. A observação detalhada das duas mulheres – inclusive nas interações de carinho entre elas, como o ajuste do sutiã e o uso da palavra "amor" – revela um interesse que parece misturar curiosidade e uma provocação indireta à primeira mulher, talvez para testar sua reação.
A narrativa traz elementos de crítica à monotonia da rotina e à maneira como a sociedade rotineiramente passa do espanto à apatia, em um ciclo que, para o narrador, termina em tédio. A frase final, “Você não faz parte deste mundo”, reforça a sensação de que o narrador se considera deslocado ou incompreendido, talvez por seus próprios valores ou visão de mundo. O narrador compartilha uma proximidade ambígua com as mulheres: ao mesmo tempo que sente um gosto em comum, mantém-se distante, reforçando sua postura de observador crítico e isolado.
Esse texto carrega influências que parecem vir de várias vertentes literárias, combinando uma narrativa introspectiva e observadora com temas de alienação social, sensualidade e crítica aos padrões da vida cotidiana. Algumas possíveis influências incluem:
Existencialismo e Reflexões sobre Alienação: Autores existencialistas, como Albert Camus e Jean-Paul Sartre, frequentemente exploram a sensação de deslocamento do indivíduo em relação ao mundo ao seu redor, o que se reflete no narrador deste texto. A percepção de tédio e de rotina maçante, bem como o olhar crítico sobre a monotonia da sociedade, se alinham a temas existencialistas. A sensação de "não pertencer a este mundo" ecoa o sentimento de alienação típico do existencialismo.
A Narrativa Observacional e o Olhar Crítico da Modernidade: O estilo observador, que se foca em detalhes das reações das pessoas ao redor, pode remeter a Machado de Assis. Seu narrador também atua como um observador crítico e distanciado, muitas vezes destacando a hipocrisia ou as idiossincrasias dos personagens ao redor. O texto tem esse tom machadiano de um olhar distanciado e até cínico sobre os outros e a sociedade.
Erotismo e Subversão: A descrição da intimidade entre as mulheres e o impacto que essa proximidade causa nos presentes remete a autores que exploram o erotismo e a sensualidade de maneira ambígua, como Anaïs Nin e Henry Miller. A naturalidade com que o narrador observa o relacionamento e suas provocações sutis reflete uma visão mais livre e subversiva das convenções de gênero e sexualidade.
A Monotonia da Vida Cotidiana: O texto reflete, de certa forma, a influência de escritores como Charles Bukowski, que frequentemente aborda a monotonia e o tédio do cotidiano urbano. O cansaço da rotina e a forma como o narrador observa a mesmice ao seu redor podem remeter a esse olhar desiludido e desencantado.
Influência da Psicanálise e das Relações de Poder: A narrativa parece também beber de uma fonte psicanalítica ao explorar o desejo, o ciúme e as sutis dinâmicas de poder nos relacionamentos. A análise do narrador sobre a tensão ciumenta da primeira mulher e seu próprio desejo de irritá-la sugere uma visão freudiana, que explora o inconsciente e o desejo reprimido.
Essas influências juntas formam um texto onde a crítica social e o individualismo existencial se encontram, oferecendo uma reflexão sobre como os padrões e a monotonia corroem o significado das experiências humanas, transformando tudo em tédio e apatia. A mistura de observação e introspecção faz com que o texto toque em algo universal: a busca por sentido em meio a um cotidiano que se revela monótono e previsível.
O texto "Elas e eu" oferece uma experiência de leitura introspectiva e observadora, onde a sensação de alienação, o julgamento social e a crítica ao tédio da rotina se entrelaçam. A narrativa assume um tom contemplativo, revelando, através do olhar do narrador, uma visão cética e desiludida da vida cotidiana e das reações previsíveis das pessoas ao que é “diferente” ou fora da norma.
Estrutura e Narrativa: a estrutura do texto é marcada por uma progressão que vai do espanto à apatia. Logo no início, a chegada das mulheres causa um impacto, mas, conforme o texto avança, a surpresa se dissipa, sendo substituída pelo tédio que o narrador sente diante da monotonia do ambiente. Essa estrutura cíclica (do espanto ao tédio) reflete a própria crítica do autor à previsibilidade dos comportamentos humanos, que parecem seguir sempre a mesma trajetória de novidade-rutina-tédio.
O estilo narrativo, com foco nos detalhes e nas reações, cria um ambiente onde o leitor pode vislumbrar tanto as mulheres quanto os espectadores que as observam. A opção por um narrador em primeira pessoa é particularmente eficaz para expor as nuances de percepção e julgamento, além de nos inserir no fluxo de pensamentos e observações do próprio narrador, que adota uma postura distanciada e quase superior ao ambiente que observa.
Temas e Análise Psicológica: o tema da alienação social é central no texto. O narrador se apresenta como alguém que não pertence ao “mundo” ao seu redor, reforçando uma distância intelectual e emocional. Há, inclusive, uma ambiguidade no interesse do narrador pelas mulheres: ele as observa de maneira intensa e quase provocativa, mas sempre mantendo um distanciamento seguro. A forma como ele "encara" uma das mulheres para provocar a outra mostra um interesse misto de curiosidade e controle, o que adiciona uma camada psicológica interessante. Esse detalhe insinua uma busca por relevância ou impacto, algo que ele talvez não encontre em sua própria vida.
O texto também toca em temas de sensualidade e provocações de gênero e sexualidade, que desafiam a norma e expõem a reação social ao que é “fora do comum”. A intimidade entre as mulheres é tratada com uma naturalidade que vai contra o espanto inicial do público ao redor, sublinhando a hipocrisia e o conservadorismo silencioso do grupo. O narrador parece se divertir ao observar essa reação, reforçando uma visão crítica e cínica sobre a sociedade e suas convenções.
Crítica à Rotina e à Vida Moderna: a crítica ao tédio e à previsibilidade é uma característica central. O narrador descreve o cotidiano como uma sucessão de mesmices que corrompem qualquer novidade, tornando a vida uma repetição mecânica. Essa perspectiva pessimista sugere uma visão desencantada da vida moderna, onde o contato humano e as experiências autênticas são rapidamente desgastados pela rotina. O calor e a viagem de ônibus são descritos com desdém, reforçando uma sensação de desconforto e aprisionamento na rotina.
Pontos Fortes e Limitações: o ponto forte do texto está em sua capacidade de capturar uma cena com tantos detalhes psicológicos, gerando uma atmosfera de tensão e introspecção que mergulha o leitor na subjetividade do narrador. A crítica social e a exploração do tédio dão ao texto uma profundidade reflexiva, destacando as armadilhas da vida cotidiana e os julgamentos automáticos que fazemos das relações alheias.
Por outro lado, a postura do narrador — cínica e desiludida — pode criar uma certa barreira emocional para o leitor. Ele observa tudo de maneira impassível, e seu tom quase superior pode alienar alguns leitores, que podem não se conectar com sua visão de mundo. Essa limitação pode tornar o texto denso, exigindo uma leitura cuidadosa para que suas nuances e críticas se revelem completamente.
Conclusão: "Elas e Eu" é um texto que convida o leitor a refletir sobre a alienação e o tédio na vida contemporânea, além de criticar a forma como a sociedade lida com o que considera “diferente”. Ao combinar um olhar atento sobre as reações humanas e uma crítica ao cotidiano desgastante, o autor cria uma obra que ecoa temas existencialistas e psicológicos. Embora a visão cínica do narrador possa ser um ponto de desconexão, ela reforça a proposta crítica do texto: uma vida onde o espanto se torna rotina, e a rotina, inevitavelmente, se transforma em tédio.
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